quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Meu coração

Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um album de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria.
Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d'água.
[...]
Meu coração não tem forma, apenas som.
[...]
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou no mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplando por um único garçom. Ao fundo, Tom Watis geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
[...]
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega.
Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciaçoes, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cineasta louco, varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.
Meu corãção é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mario Quitana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

Caio F.
O Estado de S. Paulo, 10-02-88.
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No celular um torpedo pela manhã: "Bom dia, MENINÃO!"
(que seja assim, nosso prazer!)

4 comentários:

Daniella Ricciardi disse...

Acredite no tempo.. Ele sabe o que faz... e não adianta.. a parte mais gostosa em um relacionamento é a conquista.. Aproveite e boa sorte...

Beijoos..

descolonizado disse...

coração? [suspiros]
eu tenho um? o meu está aposentando por inoperância... [risos]

Igor disse...

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.

o meu tbm... =/

Jana disse...

eu amo esse texto. quando li a primeira linha, ja sabia se tratar de Caio F. Perfeito

Beijos